Última noite (carta para os que vivem), para quando eu morrer

 

E se fosse o último…


Se realmente acabasse hoje.

Não sou de escrever assim. Pensando em fim. Vivo mundano. Na ilusão de controle. Escrevo mundano, ébrio e noite. Mas a questão é outra. É se o fim fosse hoje. Independe de como. O ponto é ser final. Os que ficam é que me importam. Pois quem foi, no caso eu, não importo. Não pra quem não mais é. Mas pra quem ainda esperava algo de mim, meu fim é algo. E isto pode ser objeto de preocupação. Mesmo que fosse meu último dia. Ainda seria essa minha provável última ideia. E eles ainda teriam muitos pensamentos. Sentimentos. Quanto mais próximos os membros dos círculos de relacionamentos, de intimidade e de confiança, maiores seriam as dores. Não por ser especial. Mas porque é sempre assim. Coisa de gente. Nojentamente nos tornamos responsáveis por aqueles que cativamos, não é? Então faltar, nos prova que nada controlamos. E isso desespera. Literalmente tira a esperança. O senso de controle. Só nos resta o de pertencimento. De que fomos unidos. Vivemos momentos juntos. Dividimos espaços e vivências. Trocamos pensamentos. Por vezes verbos. Raramente toques. Dificilmente sinceridades. Rarissimamente amor.


Alguns, ao saber que foi meu último dia, lembraria de algo, ou de algos. Me sinto com sorte de não virar história. Jamais deixem-me virar nome de coisa ou lugar. Lembrem de mim no silêncio da sua mente. Se quiserem uma noite ébria em meu nome, eu respeitaria. Nada mais além. Usem o tempo que lhe restam para fazerem coisas que lhe tragam valor. Àqueles que já me abraçaram, eu deixo um carinho especial. Se te tirei do chão, eu te amei. Se te chamei mais por apelido do que por nome, eu te amei. Se te liguei, só pra saber de você, eu te amei. Se não fiz nada disso, não finja que nos amamos. Se eu passei mais de uma hora te ouvindo, e não cobrei por isso, você foi mais do que um vínculo humano, com todo meu respeito profissional. Se passei mais de uma hora falando para você e não ganhei por isso, você foi mais do que um vínculo humano, com todo meu respeito profissional. Estudei para poder ter a liberdade de estudar o que gosto. Trabalhei ouvindo, lendo, escrevendo e falando. Me comunico. Com aqueles mais incomunicáveis. O comatoso, o louco, o sem ânimo pra falar, o sem vida pra viver. O que chora e grita pra entender o que sente. O que sente excessivamente e extrapola a dor de existir. O que insanamente quer aprender e se dedica a estudar o resto da vida para também se comunicar com os incomunicáveis. Com os que não vão lhe trazer, mas lhe pedir. E isso também é coisa de gente. Pois pertencemos.


Curioso, preferi ser assim. Por vezes, fui chamado de intelectual, sábio, inteligente, talentoso, esforçado. Mas nunca me considerei nada nem perto disto. Quem comigo viveu sabe como me cobrava e me criticava, o tempo todo. Nunca aprendi a me amar. Aprendi a me respeitar. A aceitar que era somente curioso. Via meus avós e pais envelhecendo. Achava curioso. Minha esposa dormindo, acordando, rindo, chorando, se envergonhando e se irritando. Achava curioso. Meus filhos crescendo. Curiosos. Eu, orgulhoso. Claro que sinto. Sinto muito em ter ido. Preferia ficar mais. Não pra sempre. Mas, ao menos, até a lucidez me abandonar. Porém, como já fui, não sinto mais nada. Juro. Não tô sentindo nada. Só existo na química do mente de vocês. Ademais, continuo sendo coisa de estrela. Como tudo que é matéria.


Se alguém aqui se achou especial o suficiente para que eu citasse seu nome, errou. Quem gostou de mim, gostará mesmo sem homenagens ou dedicatórias pessoais. Mas para uma pessoa eu preciso falar. Sim, você aí que achou que eu teria coragem ou a pachorra de não te nomear. Lembra quando te disse que te amava? Era verdade. Mesmo que tivesse bebido. A gente já discutiu, ninguém concorda com tudo, mas dane-se. Eu morri. E então posso dizer daqui de onde estou, no nada, que valeu muito. Que você é um poço de imperfeição. Mas te amo da mesma forma. Então e por isso espero que viva o máximo de vida que puder. Sem mais conselhos. Afinal, conselho de quem morreu chega a ser patético. Seu nome está aqui, comigo, nomeado e escrito. Não precisa de tanta curiosidade assim, né? E, pra quem fica, lamento… Vida que segue. Falar em vida, e em vida após a morte, não repare não. Mas se quiser reparar, estou logo aqui. Sim, bem aqui. Atrás de você. Mentira. Estarei no seu quarto numa terça de noite, quando menos esperar. Mentira. Será numa quarta. Mentira. Era só pra descontrair. Eu morri mesmo e acabou, pode dormir na tranquilidade. E me deixe morrer em paz.

Segue daí.

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