Fibromialgia (e dores psicossomáticas em primeira mão)

 

Introdução:

Falar sobre Fibromialgia é antes de tudo falar sobre a descrição de uma queixa. Por definição DOR difusa de caráter cronificante, que acomete o sistema musculoesquelético. Sendo uma das “doenças reumatológicas” mais frequentes.


Ainda sem etiopatogenia bem esclarecida (devido a falta de um “substrato orgânico”), continua sem marcadores biológicos patognomônicos, não podendo ser “escaneada, medida ou verificada”.


Este transtorno pode ser bem entendido como um fenômeno de fenótipo complexo, biopsicossocial e se manifesta de diversas formas. Sua avaliação depende do discurso do paciente, de sua história clínica. Além do sintoma álgico (agravado pela compressão dos locais de tensão), encontramos achados como fadiga, rigidez matinal, parestesia nas extremidades, sensação subjetiva de “edemas”, alterações de comportamento, ansiedade, depressão, alteração do sono, da cognição e tantos outros.


Por ser uma doença com sinais psicossomáticos, nem sempre o diagnóstico é fácil. Em verdade, muitas vezes é um diagnóstico de exclusão. Já que os sintomas relatados são característicos de outras doenças, podendo levar a um maior equívoco diagnóstico.


O tratamento da Fibromialgia é Multifatorial. Envolvendo sintomáticos (analgésicos anti-inflamatórios e miorrelaxantes) com objetivo de diminuir o sofrimento, trazendo melhora na qualidade de vida. Comumente há a necessidade de utilizarmos fármacos com atividade analgésica fraca ou forte; consoante a intensidade da dor. Além de antidepressivos (tricíclicos, serotoninérgicos e duais), ansiolíticos (como benzodiazepínicos), anticonvulsivantes e relaxantes musculares.


A terapia farmacológica sozinha costuma não ser é totalmente eficaz, precisando recorrer a estratégias mais complexas e duradouras, como psicoterapia, fisioterapia, acupuntura, prática de exercício físico regular (musculação, alongamento), entre outras. Apesar de existirem muitos estudos sobre a fibromialgia, ainda há um longo caminho a percorrer para se entender completamente esta doença.


Histórico:

Desde muito cedo começaram relatos sobre esta doença. Nos tempos em que Charcot lecionava em Salpetriere (onde Freud estagiou) a chamada Histeria já demostrava os sintomas e sinais que hoje caracterizam a Fibromialgia (FM) e outras patologias entendidas como “somatoformes”.


No início do século XX surgiram alguns casos de indivíduos com dor crônica, generalizada e sem causa aparente. Que foi denominada por “fibrosite”, em 1904, por William Gowers. Esta patologia foi classificada como sendo uma forma de “reumatismo muscular” cuja causa aparente era a inflamação do tecido fibroso que cobre os músculos. Mais tarde, em meados do mesmo século, foram propostos outros termos para denominar a doença. Rapidamente essa denominação caiu por terra, pois verificou-se que não havia inflamação dos músculos e, por volta de 1970, apareceu o termo fibromialgia (FM), que perdura até os dias de hoje (Smith et al, 2011).


A FM predominantemente tende a iniciar-se na região cervical, lombar e ombros, passando depois para sítios mais específicos, em determinadas regiões corporais denominados de pontos dolorosos, tais como, joelhos, glúteos, na segunda costela etc.


Um ponto importante a ser notado são as manifestações psíquicas presentes, como observados por Moldofsky e os seus colegas. Além das citadas, alterações cognitivas e executivas podem ocorrer.

A síndrome tem maior prevalência pela manhã e pode agravar com as mudanças de clima, stress, falta de sono e de atividade física, por exemplo (A.P.D.F, 2013).


Como não existem estudos que revelem qual é o tratamento mais resolutivo, cabe ao médico determinar qual é a melhor estratégia. Que deve ser sempre individualizada.


Alguns exemplos de terapias alternativas sugeridas e estudadas são: acupuntura, hidroterapia e estimulação elétrica nervosa em pontos dolorosos (Vas et al, 2011). Por terem efeitos psicológicos, analgésicos e relaxantes.


A FM é denominada de doença reumática desde 1992, altura em que a Organização Mundial de Saúde (OMS) a classificou dessa forma. Em 1990, a ACR (American College of Reumathology) sugeriu vários critérios que foram publicados e seguidos para a detecção da doença; em 2010 a ACR apresentou mais alguns critérios, acrescentados devido a outras queixas que foram sendo notadas nos pacientes com FM. Em 2017 um estudo brasileiro propôs novas diretrizes diagnósticas (Heymann et al, 2017).


Apesar de o tratamento mais moderno ser feito principalmente com antidepressivos (de ação na recaptação de serotonina e noradrenalina, agindo também em interneurônios) e anticonvulsivantes (de ação analgésica neural, ansiolítica e indicados para dor neuropática, abstinência de opióides e tratamento da ansiedade generalizada) esta patologia ainda é considerada como uma Doença Reumatológica.


Epidemiologia:

A FM tem uma forte predisposição genética e, como todas as doenças com estas caraterísticas, os fatores ambientais têm uma participação importante como desencadeadores da doença e das suas condições. Infecções virais, traumatismos físicos, doenças autoimunes são fatores que podem proporcionar o aparecimento da doença, mas apenas 5-10% das pessoas que estão expostas apresentam FM, a maioria das pessoas que apresentam estes fatores conseguem recuperar o seu estado normal de saúde (Chong, Y., NG, B. 2009).


Os estímulos que causam a dor são captados por receptores que existem em todo o corpo e chegam ao cérebro através de ligações nervosas desencadeando uma resposta. Na FM, a dor depende inicialmente de um estresse do doente (agudo ou crônico), seja uma lesão física, infecciosa ou um trauma psíquico.


A FM caracteriza-se por episódios de dor intervalados com períodos de estabilidade do doente, mas o SNC pode ser perturbado, devido aos estímulos da dor e atuar como se a dor fosse constante. Esta perturbação pode acontecer se vários estímulos da dor ocorrerem num curto intervalo de tempo, fazendo com que o SNC assuma que a dor é constante, mesmo que na realidade a dor seja apenas temporária, acabando por haver uma sensação de dor exacerbada.


Aspectos Importantes:

Como obviamente a queixa principal é a dor, normalmente os pacientes sofrem o que Balint chamava de “conluio do anonimato”, para se referir a uma espécie de acordo tácito para “diluir a responsabilidade” do médico, mediante sucessivos encaminhamentos do paciente a uma série de especialistas, sem que afinal seja dada uma solução. Em resumo, a Via-Crúcis que os pacientes sofrem até que (por exclusão) o diagnóstico é feito. E finalmente um tratamento é instituído.


A dor é a maior preocupação do doente pois limita-lhe as atividades e não é do tipo aguda como quando se faz algum trabalho de maior esforço. Na FM, para além de não ter causa aparente, não há melhoria com o repouso. Isto pode ser prejudicial a nível psicológico, pois o doente que não esteja bem informado pode achar que tem alguma doença de maior gravidade.


Os distúrbios do sono também são muito sentidos e apesar de estes doentes dormirem as horas que são necessárias, acordam mais cansados do que quando se deitam. Através da realização de eletroencefalogramas, revelaram que, na fase mais profunda do sono, haviam interferências. Como se o doente acordasse várias vezes e não se apercebesse, acabando por ter um sono que se traduz numa recuperação deficiente (Myos, 2014).


O sofrimento do paciente pode ser intensificado pelo não acolhimento de suas queixas (por não poderem comprová-las) e pelo possível ganho secundário (quando a queixa persiste pelo excesso “terceirização” dos cuidados). Neste sentido, o sujeito apela para o diagnóstico, como forma de legitimar este sofrimento. Estes aspectos geram mais angústia, e mais dor.


Um aspecto importante é o objetivo maior do tratamento. Devolver o bem-estar dos pacientes. Quando (enquanto clínicos) costumamos lembrar dos anti-inflamatórios, antidepressivos, anticonvulsivantes, relaxantes musculares e até dos opioides, tendemos a esquecer que a “tensão” e a “ansiedade” estão na gênese da patologia e dos sintomas (e na persistência destes). Como reverter fatores estressores demanda tempo, redes de apoio, acompanhamento de multiprofissionais, talvez lembrarmos de minimizar o sofrimento e a gênese, numa só tacada, já no primeiro atendimento, venha fazer uma grande diferença. Inda mais se podemos fazê-lo de forma segura e com menos risco de dependência.


Um ansiolítico, com baixo potencial de dependência, com ação prolongada, com mínimo prejuízo cognitivo ou executivo, deve ser considerado. Uma opção é o Bromazepam de ação e liberação prolongada. Abaixo, trago um caso clínico exemplificando esta estratégia.


Caso Clínico:

M.G.E. 47 anos. Carioca, morador da São João de Meriti (RJ) desde 2010. Motorista de ônibus. Cristão; Casado (há 37 anos). Pai de três filhos.

QP: “Desde que bati com o ônibus, morri.”

HDA: Paciente com quadro de dor crônica, iniciado há cinco anos. Alega que sua dor começou após acidente automobilístico. Quando dirigia coletivo e bateu num poste (“vi o poste vindo sobre mim e tive certeza que havia morrido”). Precisou ser “retirado das ferragens” pelos bombeiros. Apesar do grande trauma, nada de ortopédico ou neurocirúrgico foi diagnosticado na Emergência, mesmo com tomografias seriadas. Ficou com hematoma torácico superficial, do cinto de segurança, que logo se resolveu em poucos dias. Porém, desenvolveu dores crônicas, de caráter tensional, que se agravavam logo ao acordar, impossibilitando o trabalho.

HPP: Sem dados sobre período gestacional, parto, aleitamento, vacinação ou puericultura. Hipertenso, sem acompanhamento especializado. Usava Captopril de forma irregular. Desconhece dose ou posologia. Nega trauma pregresso. Cirurgia de apendicectomia na adolescência. Sem complicações.

HF: Pai se suicidou quando ainda era bebê. Mãe depressiva, de longa data.


Ao exame: Lúcido, ansioso, em posição antálgica. Alegando que “tudo dói”. Chora ao lembra que ontem foi aniversário do seu filho caçula. E já tinha acordado angustiado. Tentou levar o bolo, mas não conseguiu, se sentia tenso e com dores crescentes aos esforços. Se culpava, pois semanas antes tanto seu ortopedista, quanto seu reumatologista, lhe disseram que não haviam motivos “físicos” para suas dores.

Estava em uso de Duloxetina 30 mg/dia, Pregabalina 75 mg/noite e Tramadol 50 mg SOS. Havia usados “várias medicações”, sem saber pormenorizar quais ou como. Referia acordar angustiado e se sentia mais entristecido e preocupado com o decorrer do dia. Com agravamento progressivo das tensões. Alegava não conseguir fazer exercícios. E se sentia enrijecido de manhã. Dificuldade de manter o sono. Se queixa de agora precisar “ser sustentado” por outros.

Afirma não se dar com terapias (psico ou fisio). Por não gostar de falar de si e nem de lembrar do acidente. E não queria sentir mais dores, que agravavam durante a fisioterapia.


Conduta: Já na primeira consulta ajustei as dosagens e iniciei o Fluxtar SR 3 mg, um de manhã, com Duloxetina 60 mg. Além da Pregabalina 150 mg na janta. Assim, seu dia se tornou mais ameno e compensatório. Sem necessidade de uso de SOS.

Finalmente aceitou iniciar hidroginástica e Pilates. E sua esposa fazia com ele. Além de readmitir um tratamento psicoterápico (TCC 2x/semana).

Com três meses deste novo esquema, além do suporte familiar, o paciente já planejava novas possibilidades de trabalho. Sua esposa alegou que estavam pensando em montar uma lanchonete (ambos gostavam de cozinhar) e estavam cheios de ideias.

Pela primeira vez, em anos, se dizia esperançoso. E que suas dores já não lhe paralisavam.


Referência Bibliográfica:


A.P.D.F- Associação Portuguesa de Doentes com Fibromialgia.


Smith, S. et al. (2011). Fibromyalgia: an afferent processing disorder leading to a complex pain generalized syndrome. Pain Physician Journal, 14, pp. 217-245.


Vas, J. et al. (2011). Effects of acupuncture on patients with fibromyalgia: study protocol of a multicentre randomized controlled trial.


Heymann, R. E. et al. (2017). New guidelines for the diagnosis of fibromyalgia. Revista Brasileira de Reumatologia, Vol 57, Supplement 2, pp. 467-476.


Chong, Y., NG, B. (2009). Clinical Aspects and Management of Fibromyalgia Syndrome. Annals Academy of Medicine, 38, pp. 967-973.


Myos- Manual prático para o doente com fibromialgia parte I e II.

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